Muito tempo atrás, sobre um morro próximo à cidadela de Canudos, na Bahia, esparramavam-se pés de uma planta chamada favela, muito comum na região. O morro passou a ser chamado de Morro da Favela.


Depois da Guerra de Canudos, os soldados do Exército Brasileiro que massacraram Antônio Conselheiro e seus seguidores, regressaram ao Rio. Muitos não receberam o soldo. Pobres e sem moradia, instalaram-se em habitações precárias no Morro da Providência, que passou a ser conhecido como Morro da Favela.


Outros morros surgiram, adotando o termo de favela àquelas construções improvisadas. Àquela altura, a população das favelas começou a crescer. Uma população de pessoas muito pobres e batalhadoras.


Para não ser confundido, o Morro da Favela voltou a ser Morro da Providência. Às favelas juntou-se o tráfico e a violência habitualmente conhecida.


A mídia baniu a palavra favela dos noticiários. De agora em diante, são comunidades. Assim, os moradores das favelas acreditam que  finalmente chegou a justiça social. Algumas autoridades acreditam que ganharão alguns votos fazendo com que os moradores da favela acreditem que realmente tenha chegado a justiça social. Os politicamente corretos acreditam que, com isso, está sendo feita justiça social.


E, quem sabe, a favela volte a ser apenas uma planta.

Eparrei!




Rogério de Moura



Dia desses, um sujeito comprou um pacote de viagens numa agência barata. Foi o que pôde pagar. O navio, que curiosamente tinha um nome que começava com a letra "T", de Titanic, bateu em um iceberg e afundou. Apenas ele sobreviveu ao naufrágio, despertando em uma ilha deserta. 

Tempos depois, encontrou uma garrafa na areia da praia. Aberta a garrafa, na esperança de poder encontrar a melhor cachaça mineira ou pelo menos uma 51 ou Velho Barreiro, deu de cara com uma névoa, da qual surgiu (adivinhem só) um gênio, que prontamente agradeceu ao náufrago pela libertação, oferecendo-lhe, como recompensa, a realização de apenas um desses desejos:


Opção 1: ganhar 5 milhões de reais, ou...


Opção 2: em um só pedido, acabar com toda a podridão inerente ao instinto humano. Seria também o fim da violência, das guerras, da corrupção, da fome, da pobreza, dos motoristas bêbados e do Paulo Maluf.


Nosso amigo, sem titubear, pediu a "Opção 1" e, no dia seguinte, tornou-se o novo milionário da Mega-Sena. E, hoje em dia, vive feliz da vida, com a conta bancária cheia de cifras, gastando uma fortuna em segurança, tendo a família vivendo em condomínios extremamente armados e tentando curar o câncer dos filhos.


O condomínio onde vive, pouco tempo atrás, sofreu um arrastão. Viaturas, helicópteros, programa do Datena... Por sorte, ele e a família não estavam lá. Afinal, ficaram mais de quatro horas presos em um congestionamento. Uma de suas filhas, semana passada,  sofreu um sequestro-relâmpago. Graças a Deus, os bandidos levaram a grana e preservaram a vida das vítimas.


E o milionário náufrago consola-se: havia optado por uma vida melhor.




Rogério de Moura




Naquela rua havia uma praça, com uma árvore, com uma família de joão-de-barro, com um beija-flor, com um sabiá . Ao redor da árvore havia crianças que brincavam de pega-pega e esconde-esconde. Mas isso foi há muitos anos atrás. Elas corriam em meio aos realejos e aos vendedores de bijus. E continuaram correndo por anos. Ainda conseguiam jogar futebol no asfalto, em meio a alguns automóveis. Depois sumiram, por causa do trânsito. Porém, as crianças e a alegria que proporcionavam não eram coisa produtiva. Assim como o cochilo após o almoço em dia de expediente.


Naquele bairro havia um campo de várzea. Agora cedeu lugar a um produtivo banco, assaltado pela terceira vez nesta semana. Mas o campo não era coisa produtiva.


Naquela rua havia casas cobertas com telhas de barro e quintais com mangueiras e goiabeiras. Hoje, apenas prédios, condomínios, um shopping-center e uma horda de pessoas que não se cumprimentam, enquanto fazem compras. Tudo ficou mais moderno e produtivo. Tudo em nome do progresso.


Tempos atrás, naquele mesmo lugar, pessoas sorriam e se cumprimentavam. Hoje em dia, ninguém se conhece, ninguém sorri, ninguém diz um "bom dia". 

O que se vê é um mar de prédios cobrindo o horizonte enquanto um violento rio de automóveis se espalha pelas entranhas do bairro. Motoristas em fúria, ofendendo-se enquanto espancam suas buzinas. Uma legião de consumidores fazendo compras.


Dizem que o lugar progrediu, que está mais produtivo. Tenho sérias dúvidas quanto a isso. 

Mas não sou ninguém. Apenas um órfão do antigo bairro.


Eparrei!


Rogério de Moura




Como todos os dias, ele entrou na lanchonete com o seu livro. Só que, desta vez, ao pagar ao caixa o seu pingado e pão com manteiga, esqueceu o livro no balcão. Até notar o esquecimento, gastou meia-hora. Quando se deu conta do esquecimento, retornou, gastando mais duas horas de trânsito.

Duas horas e meia depois, estava de volta à lanchonete, certo de que seu livro havia sido levado por alguém. Um leitor fã daquele autor, alguém que gostasse de livros, de conhecimento, de enriquecimento cultural. Que nada! Lá estava o livro no balcão, na mesma posição.

Refez, em sua imaginação, a trajetória do livro durante o período de "esquecimento" no balcão da lanchonete. Ninguém deu o mínimo valor àquele objeto que havia sido razão de cultura, conhecimento, descoberta, risos e lágrimas de pessoas. 

E a felicidade por reencontrar o seu livro cedeu lugar à decepção. Preferia que tivessem levado o seu livro embora. No entanto, seu livro estava lá, na mesma posição em que havia deixado, não demonstrando sinais de ter sido tocado alguma vez. 

Ninguém se interessou pelo livro, nem ao menos em folhear a capa, em ler a orelha, em conhecer um pocuo do conteúdo. O livro teve menos importância que o porta guardanapos de papel ou a embalagem de mostarda e "catchup". O livro valeu menos que o paliteiro.

Fosse um celular, não importa quão ultrapassado modelo, não teria resistido a cinco minutos do balcão. Uma mão rápida o teria levado ao bolso. Mas, o livro, era invisível.




Rogério de Moura