O Brasil e o seu Primeiro Mundo imaginário

- Eles querem me matar! Eles querem acabar comigo!
Foi o que disse o Rogério de Moura, médium cinematográfico que me incorpora, antes da última incorporação.
- Calma, Rogério, calma! Você precisa de paz de espírito.
E precisa mesmo. Um médium em desespero não é o ideal para uma entidade incorporar. E, sobre o que ele reclamava? Várias coisas. Em primeiro lugar, a burocracia que dominou o setor audiovisual. O Rogério reclamou que, no mesmo edital para produção de filmes, curtas, documentários, houve o acréscimo de uma infinidade de “picuinhas”, mesmo havendo apenas seis meses de intervalo entre eles. Milhares de documentos que não terão utilidade caso o projeto não seja provado. Agora mesmo, encerraram-se as inscrições de um desses editais. Aposto que a turma da burocracia audiovisual deve estar, neste momento, se reunindo para articular novas picuínhas para acrescentarem na próxima vez. É um ciclo interminável. Só faltam pedir atestado de batismo, sanidade mental e conta de luz de dez anos atrás.
- Os cartórios estão ganhando uma fortuna com os editais de cinema! - disse, quase chorando.
Outras coisas fizeram (ou melhor, fazem) o Rogério sair dos trilhos. A explosão de um bueiro no Rio de Janeiro, de um caixa eletrônico em São Paulo (de abril para cá, foram mais de cem), cada vez que um assassino aparece rindo para as câmeras de televisão, zombando da vítima que acabou de (obviamente) matar; ou a cada vez que um motorista bêbado mata alguém, o Rogério arranca os cabelos, mesmo não os tendo, pois regularmente passa “máquina zero” na cabeça.
Ele disse também que o Brasil tem mais de mil cursos de Direito, enquanto os Estados Unidos têm dez por cento disso. Enquanto que a terra do Tio Sam tem um nível exemplar, apenas dez por cento dos bacharéis tupiniquins conseguem ser aprovados no exame da OAB. E o nosso ministro da Educação teve a pachorra de dizer que o exame da OAB não serve como parâmetro. O que então serviria como parâmetro para se medir a qualidade do ensino dos cursos de Direito?
Eu respondi ao Rogério que talvez o governo devesse criar uma espécie de IPC. Não o Índice de Preços ao Consumidor. Seria um novo índice: Índice Porta de Cadeia. Nivelaríamos por baixo os cursos de Direito e todos os bacharéis analfabetos poderiam exercer sua profissão de advogado.
O Rogério continuou choramingando:
- Como é que pode, um país que quer dizer que entrou para o Primeiro Mundo, ver um turista americano ser incinerado após uma explosão de bueiro, ou morto ao cair do bondinho de Santa Teresa e ser assaltado logo em seguida? O Brasil acha que se tornou uma espécie de Suécia, ou um Estados Unidos na América do Sul, mas tenho receio de que seja mesmo uma espécie de Equador, com mais quintal e mais grana.
- Quanto pessimismo, Rogério! Tentou assistir os desenhos do Bob Esponja? Às vezes funciona.
Mas ele já tentou de tudo: o Bob Esponja, Os Pinguins de Madagascar, os discos do Costinha, Ari Toledo e Chico Anísio, o 'Furo MTV' nas comédias do Billy Wilder, Frank Capra, ouvir o Sargent Peppers dos Beatles, os sambas do Noel Rosa, Bezerra da Silva, Morais Moreira, as músicas do Donovan (quem? um músico inglês), ou, quem sabe, uma tour pela Rua Augusta...
- Já tentou tomar a mineirinha do bar do mineiro?
É assim que a gente chama uma cachaça de Minas Gerais, que tem no boteco em frente à minha casinha de sapê. Houve um tempo em que ele se consolava com a mineirinha. Hoje em dia, preocupado com a saúde e, principalmente, com o peso, está frequentando uma  academia de ginástica e evitando o álcool.
- E o povo não reage! Não faz nada! A não ser quando o time perde. Nos tempos da Ditadura, o povo lutava. Hoje em dia, está indiferente, como que embriagado por uma liberdade que não usufrui em sua plenitude. Algum militar nostálgico, com suas pantufas, deve estar pensando: ‘Ah, que pena que o povo está como a gente queria, só que muitos anos depois.’
O que dizer ao Rogério, esse cineasta aflito? Acho que ele pegou pesado em alguns pontos, mas há alguns itens em que ele tem certa razão. Mas, o fundamental é que ele não vai corrigir o Brasil.
- Só porque podemos comprar uma TV de LED, um carro zero à quinhentas prestações, um ar condicionado; só porque uma família nos confins do Brasil teve, finalmente, iluminação na rua, não significa que nos tornamos uma Suécia. Esse Primeiro Mundo é imaginário.
Nesse ponto eu concordei com ele. Pensei no banzo, espécie de melancolia da qual os negros sofriam na época da escravatura. A saudade da África. No entanto, a África para os negros no Brasil era uma África imaginária, acolhedora, um lar. Assim como a África para os negros escravos, o Primeiro Mundo é uma espécie de Shangri-Lá no inconsciente brasileiro.
- Um momento, Rogério, no Primeiro Mundo, o real, também existe corrupção, violência, pobreza...
- Eu sei, eu sei! Mas, meu Jovem Preto Velho, a diferença entre nós e o Primeiro Mundo real se resume em uma palavra apenas: impunidade.
Não é legal incorporar em um médium atormentado. Recomendei-lhe um trabalho de energização pesado para que tenha mais paz de espírito. Também recomendei o seguinte ritual: fazer uma montagem fotográfica na qual o Brasil estaria geograficamente no Primeiro Mundo. E, todo dia, pela manhã, observar essa foto com concentração, enquanto entoa o seguinte mantra: “Primeiro Mundo, Primeiro Mundo, Primeiro Mundo...”
Eparrei!
O Brasil, uma ilha de prosperidade, finalmente no Primeiro Mundo.


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2 comentários:

  1. Fantástico o mapa!
    Me faz lembrar de um romance do saudoso José Saramago: "A jangada de pedra". Portugal se "desprende" da Europa e sai boiando pelos mares, à deriva. E dá-lhe metáfora política e social.
    Uma dica pra reforçar essa terapia indicada pelo Jovem Preto Velho: ao observar o mapa toda manhã, entoe também um mantra já ensinado pelos nossos antepassados (nem tão passados assim): "Eu te amo, meu Brasil, eu te amo! Meu coração é verde, amarelo, branco, azul-anil
    Eu te amo, meu Brasil, eu te amo
    Ninguém segura a juventude do Brasil".
    Nossa, senti um arrepio! E me parece que vi um vulto, de um velho general! BRRRRRRRR!!!!!

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  2. Ficou um tese no ar (uma tese atmosférica) de ue a economia crescendo nos levaria para o primeiro mundo. Só que esqueceram do resto que precisa acompanhá-la. Seremos sim, um potencia econômica algum dia, mas a sociedade nunca sairá do terceiro, desse jeito.

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