Um espírito de motorista bêbado baixou no meu quintal


Antes de sentar na varanda de minha casinha de sapê e começar a escrever, lembrei-me de jogar milho para as galinhas que ciscavam pelo quintal. Milhos jogados, surgiu diante de mim a imagem um tanto translúcida. Identifiquei como sendo um homem, mais ou menos uns trinta de cinco anos. Gravata arriada, olhar perdido, expressão de embriaguez. Perguntou-me o que estava fazendo ali, naquele quintal, em meio às galinhas.

- Amigo, você está morto. - disse para ele. - E, pela expressão de embriaguez, estava bebendo. Não é mesmo?

- Bebendo... É mesmo, agora me lembro... Eu bebi, e depois, estava voltando para casa...

Não lhe dei tempo de completar a frase:

- Dirigindo, não é mesmo?

- É... é verdade... Eu estava... mas só bebi um pouquinho.

Não era a primeira aparição nesse estado que surgia em meu quintal. Antes, eram poucas, hoje em dia são várias. Dei uma bronca na alma perdida:

- Muito bonito! O senhor deve ter perdido o controle do carro, é claro, e agora está aí, diante de mim, sem saber o que fazer.

- Agora me lembro... Aquela curva... Mas tava tão fácil... Eu bebi tão pouco.

- Mas bebeu o suficiente para morrer.

Tive, assim que terminei a frase, o ímpeto de dar-lhe uns cola-brinco. Mas ele não iria sentir dor nenhuma e deixei para lá. O que não me impediu de dirigir-lhe ásperas palavras: “Valeu à pena?”, “Custava voltar à pé para casa ou pagar um táxi?”, “O que será de seus familiares?”, “Anos de sacrifício que seus pais gastaram para criá-lo, educá-lo, e você joga tudo pelo ralo, ou melhor, pelo gargalo.”

O espírito tentou chorar, mas não tinha lágrimas.

Não sou contra o álcool. Afinal, eu também enfio o pé na jaca quando incorporo no Rogério de Moura, médium cinematográfico. E o coitado do cineasta, que agora está fazendo academia, comendo arroz integral e bebendo chá verde fica furioso.

- Meu filho, você poderia beber tudo o que quisesse, até o coma alcoólico. Mas, pra quê pegar no volante depois?

Mas o espírito do motorista bêbado não se dava por vencido:

- E deixar o meu carro sozinho na esquina do boteco? Jamais!

Quase tudo na vida de uma pessoa depende de suas escolhas, tudo na morte também. Por último, o motorista bêbado recém-falecido pediu-me para incorporar no Rogério, para poder dar seu último adeus à família. Não permiti.

- Vá procurar outro médium, seu pau d'água!

Surgiu uma luz e o espírito, cambaleando, seguiu o facho luminoso e despareceu. Mais um. Dias atrás, outro espírito de motorista bêbado havia surgido no quintal. Era um caminhoneiro que acabara de tomar rebite. Também se lamentava por abandonar a família precocemente. E também levou uma bronca minha.

Houve, confesso, um raro espírito de motorista sóbrio. Tratava-se de uma mulher que havia ido buscar os filhos em um colégio. Parou em fila dupla e, nesse momento, um caminhão - cujo motorista deve também ter tomado umas e outras - perdeu o controle e... E o espírito dela veio me visitar. Não escapou de uma bronca minha, afinal, se não tivesse parado em fila dupla.

“Estacionar no lugar correto é coisa de pobre; rico só estaciona em fila dupla.” Foi o que ela disse antes de seguir a luz e desaparecer.

A presença desses espíritos em meu quintal já foi rara. Isso, há muitos anos atrás. Como hoje em dia todos podem comprar um carro a quinhentas prestações e beber à vontade, sem lei, sem punição, sem nenhuma medida socioeducativa, a frequência desses mortos foi aumentando.

Durante o calor das primeiras semanas da Lei Seca, o número de óbitos até que chegou a diminuir. Mas como no Brasil as leis têm a duração de um pote de iogurte fora da geladeira, e como não há nada que um bom habeas corpus ou liminar não avacalhe, a quantidade de espíritos de motoristas bêbados recém-falecidos que surgem em meu quintal está superando à dos grãos de milho que jogo para minhas galinhas.

Eparrei!

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