Velório de autoridade (se as pessoas fossem sinceras)


Como sempre, toda semana, estava agendada a minha sessão mística com o afro-anárquico-mundano-ecumênico médium cinematográfico Rogério de Moura. Entretanto, soube do falecimento de uma importante autoridade. Resolvi visitar o fúnebre evento, afinal, ficava no caminho mesmo.

Estavam lá a imprensa, políticos, magistrado e autoridades equivalentes. Havia também pessoas comuns e os inevitáveis papagaios de pirata. Poderia jurar que havia um vendedor de pipoca caminhando em meio deles. Não sei bem se era real ou algum espírito brincalhão.

Mas o espírito que eu vi mesmo foi o dito cujo, a autoridade, bem ao lado do corpo que habitou por décadas. Triste, enquanto observava o próprio cadáver. Ainda aparvalhado, sem saber o que fazer. Um tanto quanto decepcionado. Olhou para mim com os pseudo-par-de-olhos tristes e lamentou: "Infelizmente, a morte é o único escândalo do qual não consegui escapar." Depois desapareceu. Para onde teria ido? Paraíso? Terra do Fogo e do Castigo Eterno?

Estava chegando a hora da incorporação do Rogério e eu precisei me retirar. Antes, decidi observar a movimentação com um pouco mais de apuro. Quanta hipocrisia por metro cúbico! E se houvesse uma lei obrigando as pessoas a serem sinceras em velórios?

"Esse degenerado roubou. Negociatas, propinas... roubou muito. E roubou muito mais que eu, ou seja, com muito mais competência."

"A gente apostou quem iria primeiro. Perdeu, vacilão!"

"Demorou pra reconhecer a paternidade da minha filha. E ainda não via a cor da grana. Pilantra!"

"Esse desgraçado que aqui tem o seu corpo velado, esse canalha nunca foi fiel a ninguém. Nem a própria mãe, quem, aliás, se não estivesse morta, ele teria vendido sem o mínimo pudor. Quero que ele arda, que arda muito na Terra do Fogo Eterno."

"Eu e meu caro amigo que aqui repousa para daqui há pouco ser enterrado já me quebrou muitos galhos. Afinal, éramos aliados. Nunca traímos um ao outro. E também porque, tenho certeza, ele divulgaria o meu dossiê, o que, convenhamos, não seria bom negócio."

"Agora que ele morreu, eu vou falar, esse miserável é o cabeça daquele esquema milionário. Tenho provas! Tenho provas! Os nomes dos juízes que esse canalha comprou!"

"Não saía de um bordel que havia perto de casa. Gostava mais das que tinham menos de quinze anos."

"Quando a CPI estava no auge, dedurou os colegas. E daí que estava sujo também? Isso não se faz. Ainda bem que a CPI não deu em nada. Um covarde."

"Já não via a hora dele morrer porque eu é que quero assumir o lugar dele. Antes tarde que nunca."

"Sei mais de dez casos em que ele mandou matar. E um caso que ele preferiu matar pessoalmente."

"Ele sempre foi contra o nosso partido quando éramos da oposição. Quando nos tornamos governo, ele só votou a favor da gente. Um oportunista barato."

Mas, no mundo real as opiniões eram unânimes: foi um grande homem e todos lamentarão a perda de tão honrado, valoroso e exemplar cidadão.

No mundo real, a alma da autoridade parte para o "descanso eterno" com a sensação de que realizou muitos feitos para o bem do país e que fez muitas coisas maravilhosas para a humanidade. Mesmo que essa seleta humanidade seja apenas aquela que morou debaixo do mesmo teto do finado.

E se houvesse uma lei que obrigasse as pessoas a serem sinceras durante toda a vida?

Eparrei!

Rogério de Moura




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