Jovem Preto Velho conversa com Dorival Caymmi sobre “Boi da Cara Preta”

Antes da sessão de incorporação no meu querido médium anarco-cinematográfico, Rogério de Moura, dei um rolezinho na minha querida Esquina do Além. E quem encontrei por lá? Dorival Caymmi!

O Rogério, certa vez, havia reclamado pelo fato do Dori ter composto "Acalanto".

A canção é belíssima:

É tão tarde
A manhã já vem
Todos dormem
A noite também
Só eu velo por você, meu bem
Dorme, anjo
O boi pega neném
Lá no céu deixam de cantar
Os anjinhos foram se deitar
Mamãezinha precisa descansar
Dorme, anjo
Papai vai te ninar.


Mas termina com os seguintes versos:


Boi, boi, boi
Boi da cara preta
Pega esta menina
Que tem medo de careta


Sim, é a popularmente conhecida "Boi da Cara Preta". Tão cantada para as crianças antes de dormir durante a era pré-internet. A canção pode ser linda, mas pertence ao repertório de traumas de infância de oitenta por cento dos negros brasileiros. Como aquela: "Fuscão preto!”, outra canção utilizada com frequência quando o assunto era perturbar o Rogério. Ou então essa, ainda pior: “Armei uma arapuca na beira da estrada... Pegou um baita dum negão que meu coração gelou.” Ouvi-las durante uma chacota, por anos, traumatiza. Poderiam até ter sido uma “canção de natal”. Traumas são traumas.

"Dori, por que cara preta?" E então me lembrei do Ernesto, do samba do Adoniran. Ele está vivo e sim, mora no Brás. Aquele que nos convidou "prum samba". O problema é que "nós fomos e não encontremo ninguém." O "Arnesto" ficou conhecido nacionalmente como um furão. Acontece que isso nunca aconteceu e ele foi reclamar para o Adoniran, que lhe disse: "Arnesto, sem a sua 'pisada na bola' não tinha samba." Sem o "cara preta" haveria outra rima decente, Caymmi?" perguntei ao mestre.

"Não... sim... talvez... acho que não. Tá bom, tá bom! Sim! Concordo contigo. Só que, qual rima colocar se tivesse optado por 'Boi da cara branca'? Veja bem, meu caro Jovem Preto Velho, na hora, foi o que pensei para rimar com careta. Inspiração poética é isso. Baixa na gente e não tem jeito. Você, uma entidade, entende muito bem disso. Não havia nada de racista. E, veja bem, eu tenho os pés atolados na mãe África. Aliás, quem não os tem?"

"O problema é que o Rogério de Moura é um tremendo fã seu. Sabia que ele sofreu anos e anos de bullying por causa dessa sua canção de ninar?" Aliás, não apenas ele. Milhares de negros tiveram que, um dia, encarar alguém lhes fazendo chacota enquanto entoava essa singela canção de ninar.

Caymmi pensou... pensou e admitiu: "Realmente, hoje em dia, com esse negócio de politicamente correto, a canção não é... digamos... elogiosa com relação aos afros. Quando for incorporar, peça desculpas ao Rogério por mim. Eu poderia ter chamado de 'boi da cara violeta'."

Voltei para a incorporação. Mas o Rogério, além de não ter se curado, segurava um litro de Red Label. Soube que estava há dias assim. Paciência! Por enquanto, deixemo-lo mergulhado em sua profunda e amarga fossa. Volto para outra sessão noutra oportunidade. Faço votos para que ele se reestabeleça e esteja melhor. Com certeza, na próxima incorporação, o cineasta vai ter que fazer hora extra.



Eparrei! 

Um comentário:

  1. Olá,
    Enquanto eu procurava assuntos relacionados à Dorival Caymmi, encontrei este blog. Muito bacana a postagem!
    Abraços,
    Lu Oliveira
    www.luoliveiraoficial.com.br

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