Dando migalhas aos pombos

Quando aquilo começou? Desde que faleceu sua esposa. Ao mesmo tempo, companheira, testemunha, amiga, amante, conselheira. Seu único alicerce. 

O mundo deixou de ter sentido. Restou-lhe um banco de praça e migalhas de pão que jogava aos pombos. Alimentava as aves. Olhos tristes, embalados em lágrimas. Com o avançar dessa rotina, passou a reconhecer cada pombos. Bicos, penas, tonalidades, feridas. Casais. Podia dar-lhe nome, se tivesse ânimo para isso. Os pombos também o reconheciam. Bastava sentar-se no banco e pousavam ao seu redor aguardando pelas migalhas que ele não negava. 

O viúvo ficou seriamente doente. Deitado em seu leito, através da janela, podia ver as janelas dos outros prédios. Um pombo pousou no parapeito da janela. “Igualzinho ao pombo da praça”, pensou. Juntou-se outro pombo. Também semelhante ao pombo que alimentava na praça. Outros pombos juntaram-se. Observou-os com maior atenção. Reconheceu-os. Eram os mesmos pombos da praça. 

Durante uma semana, os pombos da praça iam visitá-lo. Às vezes, uma enfermeira entrava no quarto e iniciava um histérico e inútil trabalho para enxotá-los. Um dia, nenhum pombo pousou no parapeito daquela janela de hospital. No dia seguinte, o viúvo teve alta. 

No dia seguinte, lá estava ele, sorriso no rosto, alimentando os pombos, para revolta de alguns pedestres para quem as aves eram "ratos de asas". 

(Rogério de Moura)

Pintura de Denise Ludwig.

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